35Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: «Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos.» 36Disse-lhes: «Que quereis que vos faça?» 37Eles disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.» 38Jesus respondeu: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu bebo e receber o baptismo com que Eu sou baptizado?» 39Eles disseram: «Podemos, sim.» Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu bebo e sereis baptizados com o baptismo com que Eu sou baptizado; 40mas o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo: é daqueles para quem está reservado.»

41Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. 42Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. 43Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo 44e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. 45Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.»  (Mc 10,35-45)

           

Conforme a narração de Marcos o episódio que nos propõe hoje a liturgia, coloca-se a caminho do desfecho de toda a missão de Jesus. Parece quase antecipar o significado daquilo que os discípulos estariam prestes a viver. È um momento de extrema fragilidade na qual vem à tona os vários elementos que se fizeram presentes entre os discípulos ao longo da caminhada e da convivência dos anos passados.

Sentimentos escondidos, expectativas recônditas... quem sabe o que de fato estavam imaginando os discípulos neste momento de sua história com Jesus ?! Estavam perto de Jerusalém, tinham recebido aceitação e reconhecimento popular junto com Jesus, sabiam, como todo bom Israelita que, como no tempo dos Macabeus, qualquer reforma, qualquer revolução, qualquer mudança profunda em Israel somente poderia acontecer a partir de Jerusalém ...e Jesus estava se aproximando de Jerusalém. È de um novo Rei que eles se sentiam os personagens mais próximos, aqueles que teriam a honra de dizer: «eu fui tido como digno de estar ao lado dele!». Aquela pequena aspiração sempre esteve camuflada entre tantos bons desejos; afinal não é nada de estranho, em cada um de nós convivem perfeitamente santos desejos e pequenas mesquinhezas, assim como somos capazes de atos de profunda generosidade e perdermo-nos atrás de pequenas coisas. Jerusalém estava perto, no entender dos discípulos de alguma maneira se tornava cada vez mais apertadora a necessidade de definir as coisas, os papeis, o lugar de cada um. Talvez por sua personalidade dominante, talvez pela intimidade que Jesus sempre lhes concedeu, os dois irmãos Tiago e João, os “filhos do trovão” (apelido este que indicava seu caráter impulsivo e veemente), se achegaram a Jesus querendo definir as coisas. É digna de interesse esta atitude dos dois irmãos; de fato quando se segue alguma pessoa, mais ainda quando nos colocamos à seqüela de Jesus, vem o momento em que se manifesta uma certa insuficiência, quase não satisfaz mais o simples seguir, precisa dar uma definição, enquadrar a caminhada dentro de algum esquema. È a mesma tentação em que ocorreu Davi diante do profeta Natã: delimitar o agir de Deus que se manifesta como um caminho e não como um resultado; só que para Deus o “andar junto” é já o resultado.

            Jesus não desdenha o desejo dos dois irmãos, mesmo se misturado a sentimentos que não coincidiam exatamente com os de Jesus, no entanto de fato manifestavam, do seu jeito, a vontade de permanecer ao lado em qualquer circunstância. Como sempre, com aquela sensibilidade e respeito dos sentimentos, Jesus acolhe o pedido deles, mas o purifica. Sim, é próprio do agir de Jesus, como o vimos em tantas outras ocasiões, nunca rejeitar atitudes que, mesmo se minimamente, escondem um bom sentimento. Jesus sabe valorizar; respeita a dignidade e a condição do homem mas o impele sempre fora de seu limite, fora de seu pequeno mundo conduzindo-o no grandioso projeto de salvação que o Pai tem para com a humanidade que sofre.

            A resposta de Jesus vale-se de um simbolismo bem conhecido entre os costumes monárquicos e na linguagem Bíblica.

            “Sentar à direita e à esquerda” era acima de tudo o reconhecimento da participação à autoridade do Rei. Era o mais alto privilégio concedido àqueles que assumiam as decisões fundamentais relativas à vida do povo junto com o Rei e, ao lado dele, arcavam com todas as conseqüências. O ato de “sentar ao lado” alcançava a mais alta significação em dois momentos: quando o Rei sentava diante do povo reunido para tomar alguma decisão de relevo e quando sentava “à mesa”, manifestando assim a comunhão com os convidados e o reconhecimento público de seu valor.

            Aos dois irmãos Jesus esclarece logo uma coisa: ninguém pode decidir que lugar ocupa ou irá ocupar neste maravilhoso e arcano projeto do Pai que visa a felicidade eterna de sua criatura amada. Não é possível a nenhum homem “definir” posição alguma, pois Deus se serve livremente e sem esquemas dos meios e das pessoas que Ele e somente Ele considera oportunas. Nunca saberemos por quais caminhos Deus chega ao coração de alguém para dar um significado à sua existência, assim como nos são desconhecidas as veredas que levarão a cumprimento pleno a oferta de felicidade que Deus faz à humanidade tão atribulada.

            A questão se coloca sob outro prisma. Não é tanto o lugar que se ocupa que é importante, mas quanto a pessoa é capaz de se deixar envolver. Este é o parâmetro que dá significado à existência e valor diante de Deus. Para despertar este sentimento e assim purificar o anterior, Jesus os interpela à luz de um outro simbolismo outro tanto bem conhecido: o cálice.

            O livro de Tobias (1,22) nos diz quem era uma das duas pessoas que sentavam ao lado do Rei, assim narra: «No tempo de Senakerib, rei dos Assírios, Achikar era o coperio-mor, ministro da justiça, administrador e superintendente dos bens...». Pois bem, em outros textos da Escritura temos referencia ao papel do copeiro, tido como o homem de maior confiança. O alto valor do copeiro se entende pelo fato de que ele, quotidianamente punha em risco sua própria vida, dia após dia, não sabendo nunca quando o veneno destinado ao Rei e colocado em seu cálice poderia dar um fim à própria existência. Perder a vida para uma pessoa que se ama acima da própria vida. Este é o parâmetro que Jesus propõe aos dois irmãos. “Não se preocupem com o lugar que vocês ocupam”, é como se lhes dissesse Jesus, “preocupem-se antes sobre quanto vocês estão dispostos a deixarem-se envolver, pois esta é a medida do amor e nesta medida vocês se encontrarão perto ou distantes de mi”. A decisão de “beber ao cálice” é radical, não admite meios termos mesmo se o fato assusta como atemorizou Jesus no Horto, no entanto é diante disto que somos capazes dos maiores atos de generosidade, desprendimento e confiança. È nisto que Jesus e os irmãos realmente se encontrarão. Também em seus corações, como nos de todas as pessoas que se dispõem em amar sem restrições, se encarnaram as palavras de Jesus a Pedro: «Pedro... repõe a espada na bainha; não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu?»

Deixemo-nos envolver sem por limites e experimentaremos a felicidade de quem sabe dar sem antepor limites.