Pilatos então voltou para o Pretório, chamou Jesus e lhe perguntou: "Você é o rei dos judeus?"


Perguntou-lhe Jesus: "Essa pergunta é tua, ou outros te falaram a meu respeito?"


Respondeu Pilatos: "Acaso sou judeu? Foram o seu povo e os chefes dos sacerdotes que o entregaram a mim. Que foi que você fez?"


Disse Jesus: "O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas agora o meu Reino não é daqui".


"Então, você é rei!", disse Pilatos.

Jesus respondeu: "Tu dizes que sou rei. De fato, por esta razão nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar da verdade. Todos os que são da verdade me ouvem".

 

Hoje, a caminhada litúrgica, que no decorrer do ano nos fez meditar os mistérios da nossa fé, encerra com a festa da nobreza. A nobreza de Jesus e a do homem.

Os Tempos de Advento e Natal nos ajudaram a reviver o nascimento do Filho de Deus, evento que marcou o encontro definitivo do Altíssimo com o homem; os Tempos de Quaresma e Páscoa nos mergulharam no significado da vida de Jesus que foi o cumprimento último da Promessa de Deus; o Tempo comum  nos ajudou a captar na vida cotidiana o mistério da presença de Cristo Ressuscitado na sua comunidade: a comunidade dos homens que fizeram experiência do amor de Deus e a Ele confiaram sua vida.

Hoje este ciclo fecha-se para começar de novo, quase a manifestar na liturgia que a Igreja celebra a essência dinâmica e eterna do próprio Deus, «aquele que era, que é e que vem» como diz a segunda leitura de hoje.

Acima de todos os poderes que, no tempo que pertence aos homens, parecem esmagar os simples, Jesus se ergue Rei definitivo, além do tempo, para dar significado à vida dos que somente experimentaram a opressão. Acima de forças usadas para controlar, Jesus se ergue com a força do amor que conquista sem violência, que destrói as barreiras que dividem o homem dentro de si e em suas relações. Ao poder da força, o Rei opõe a força de poder dar, sem restrições.  É a festa do amor que sempre vence.

È notável como nas representações bizantinas de Jesus crucificado, Ele aparece sempre de pé, em toda a sua dignidade e nobreza, coroado e revestido de trajes régios; porque? Qual o significado do título de “Rei” dado a Jesus desde os primórdios da Igreja, quando este título somente cabia ao Imperador e, em alguns casos a generais que voltavam vitoriosos de uma campanha? É interessante perceber que ainda hoje em todas as nossas missas ecoa o mesmo título com o qual foi aclamado Jesus: “Kirios” (palavra grega que significa “Senhor”). De fato hoje, no ato penitencial, proclamamos “Senhor tende piedade de nós” (em grego: ”Kirie eleison”). Esta é uma tentativa de traduzir – mais ou menos com êxito – o sentimento que movia o povo quando, de um lado e do outro da rua assistia ao ingresso triunfante do Imperador ou de um general acompanhados por um cortejo. Ao passar do Imperador um lado da rua dizia “Kirie eleison” e o outro lado, alternativamente respondia: “Kirie eleison” durante toda a duração do cortejo (isto explica porque nós também repetimos pelo menos três vezes). O significado não era negativo, quase fosse um sentimento de imploração de piedade, mas positivo; pode perfeitamente ser traduzido assim: “Senhor, olha para mim !” e o sentimento subjacente era semelhante a quando uma tele-câmera enquadra um personagem famoso e, de lado aparece um alguém do povo que acena para a câmera quase a dizer: “olha aqui para mim, existo eu também, estou aqui para me alegrar contigo do triunfo”.

Qual o triunfo de Jesus ? Creio que o próprio Pilatos nos possa ajudar a compreender; de fato, contrariamente à opinião geral, contrariamente ao bom senso que se tem quando não se quer perder uma posição, ele escreveu na cruz de Jesus “este é o Rei dos Judeus” e confirmou: ”o que escrevi está escrito”.

Não deve ter sido fácil para um procurador do Império, acostumado a entender as relações entre Rei e súdito como poder e controle, reconhecer em Jesus uma realeza que nunca tinha visto. Cada momento da narração do Evangelho nos transmite esta tensão profunda no coração de Pilatos enquanto pela primeira vez Jesus dizia: “Eu sou Rei”. Nunca antes daquele momento Jesus tinha feito tal afirmação sobre si mesmo, pelo contrário, os Evangelhos nos narram várias circunstâncias em que Jesus fugiu da multidão que queria fazer dele um rei. Mesmo ao entrar em Jerusalém, Jesus o fez seguindo as tradições dos antigos reis, montados sobre jumentos, animais do povo humilde, animais do trabalho necessário à sustentação e não cavalos de guerra. A idéia de Rei à qual Jesus se referia era em continuidade com a idéia originária de Rei isto é: aquele que protege e conhece seu povo, aquele que providencia ao povo tudo o que lhe for necessário, aquele que faz justiça porque não permite a opressão.

Contrariamente ao que acontecia entre outros povos, em Israel o Rei era uma “personalidade corporativa” ou seja, resumia em si os sentimentos de todo o povo, desde os mais humildes até os de destaque. Ele não se abstraia do povo – característica própria da realeza a partir da época medieval em diante – mas se sentia um dentre o povo. Neste sentido Jesus, ao definir-se rei, leva a cumprimento o simbolismo do seu batismo quando Ele, Deus, quis ser batizado junto com todos os pecadores, os frágeis, os simples. Um Rei no meio de seu povo, o novo povo dos humildes tão esperado pelas Escrituras. Este era o seu reino. Um reino que não pertence a um mundo de opressão e violência mas de solidariedade e partilha. É muito bonito, para mim, lembrar que nós também fomos batizados e ungidos com “reis”, tanto quanto Jesus. Nós, pessoas que não fazem deste mundo o seu tesouro definitivo mas, enquanto profundamente mergulhados neste e nunca desligados das vicissitudes humanas, se projetam além do limite imposto; nós, pessoas que esperam o que o mundo não sabe esperar.

Realeza é mais que domínio, é nobreza. È a nobreza de um coração bonito, embelezado pela capacidade de dar sem medir. Nobre é o coração que está acima, além, livre; por isso pode dar sem restrições. Nobre é quem não luta para o que é mesquinho, para meias medidas, para afirmar a si mesmo.  Ao dar a sua vida, como a última coisa a oferecer, Jesus o faz como um Rei, não como um homem derrotado; como um rei que acolhe em seu reino o último dos pecadores, um ladrão pendurado a seu lado que soube entrever o que outros não viam; o primeiro a entrar. Um Rei, nobre também na atitude que demonstra grandeza e superioridade: o perdão que justifica também quem não merece ser justificado.

Este é o nosso Rei. Esta também é a dignidade e nobreza do homem novo que tem Jesus como a riqueza de sua vida.