«No seu ensinamento, Jesus dizia: “Tomai cuidado com os doutores da Lei! Eles gostam de andar com longas vestes, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes. Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação”. Jesus estava sentado no Templo, diante do cofre do tesouro, e observava como a multidão lançava suas moedas no cofre. Muitos ricos lançavam grandes quantias. Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada. Jesus chamou os discípulos e disse: “Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros, que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”.» (Mc. 12,38-44)
Jesus estava em Jerusalém, meta da sua longa viagem e símbolo do ponto de chegada do homem que aprende a crer e seguir Jesus, como os discípulos haviam feito desde a alta Galiléia. Jerusalém era, no entender do judaísmo e da tradição do Antigo Testamento, o lugar do julgamento, onde aconteceria a salvação ou a condenação definitiva.
Pela Porta Dourada, que dá no vale do Cédron, segundo o ensinamento dos rabinos, passariam as almas dos que seriam salvos no final dos tempos. Se Jerusalém era o lugar-símbolo do julgamento final de Deus, grande significado escatológico tem o episódio que hoje nos é oferecido à reflexão pelo Evangelista, pois o fato se deu no coração do judaísmo: o interior do Templo. Quanto acabamos de ler, então, mais que uma narração é a revelação do critério último de julgamento com o qual Deus dirá a sua palavra sobre as palavras e as atitudes dos homens.
Jesus costumava freqüentar o Templo, como o fazia todo bom judeu e ali ele costumava ensinar, debaixo do “pórtico de Salomão”, parte de uma imensa estrutura que ocupava quase dois terços de Jerusalém na época de Jesus.
O trecho de hoje nos mostra Jesus precisamente no ato de ensinar. «Estava sentado», diz o Evangelista, em posição típica de quem ensinava, como faziam os “doutores da Lei”. Ao contrário da maioria dos rabinos que discutiam sobre várias interpretações da Escritura (chamada “Lei” no sentido de “lógica de Deus”, “vontade de Deus”) Jesus ensinava, isto é explicava a “lógica” do Pai a partir de fatos quotidianos, de situações comuns como aquela narrada hoje. O de Jesus era um ensinamento dinâmico, que transmitia princípios cujo valor nascia das exigências implícitas no relacionamento entre Deus e o homem e os homens entre si. Bem diferente de um ensino cristalizado em regras que pouco levavam em consideração todos os outros elementos que intervêm na vida das pessoas.
Provavelmente o ensinamento de hoje se deu enquanto ocorria uma cerimônia –não era um culto, nem uma celebração- se tratava da cerimônia da oferenda. O significado é bastante complexo e não cabe aqui determo-nos nisso, todavia é útil saber que o ato de dar uma oferenda ao Templo nasceu como gesto espontâneo de participação. Símbolo de pertencer à única comunidade de Israel, era dado com alegria e orgulho de pertencer a uma Nação única cujo rei era Jahvé (comumente os súditos pagavam um tributo ao rei. Israel, -em tese- deveria ter somente um rei: Jahvé. A história porém se desenvolveu de modo diferente.). Dar a oferenda a Jahvé era um ato piedoso com o qual se reconhecia que somente Deus é o Senhor de Israel, a Ele Israel deve obediência. Repetir o gesto da oferta deveria representar a atitude de confiança constante na providência de Deus, bem como a entrega a Ele. A cerimônia encontrava sua origem no episódio narrado no livro das crônicas quando o Rei Joás «...deu uma ordem e fizeram um cofre e o puseram do lado de fora da porta da Casa do Senhor. Publicou-se, em Judá e em Jerusalém, que trouxessem ao Senhor a oferta prevista... Então, todos os notáveis e todo o povo se alegraram, e trouxeram a oferta e a lançaram no cofre» (2Cron. 24,8s). Todavia, esta alegre e espontânea participação não durou por muito tempo! Quantas coisas, nascidas com um belíssimo significado espiritual, quando se percebe que dão “resultado”, se transformam em fonte de renda da qual dificilmente estamos dispostos a “largar mão”! Assim foi também em Israel: bem cedo aquilo que era fruto de uma espontânea e generosa doação, feita com «alegria», acabou se transformando numa regra, numa tradição e, na época de Jesus, um verdadeiro “imposto” para o Templo (cfr. Mt. 17,24). Jesus, sentado, observava as treze caixas (chamadas gazofulakion, gazofilakion) que então constituíam o “cofre” do Templo, e com estas observava as atitudes das pessoas enquanto ali «lançavam» suas ofertas. O Evangelista usa a mesma expressão que encontramos no trecho de Crônicas: «lançavam» (não “depositavam”, como usam algumas traduções). O verbo é repetido bem sete vezes –conforme o simbolismo em uso entre os judeus- para indicar que fazer a oferta é uma atitude conforme a Lei de Deus, pois indica o despojo, o desprendimento, a certeza de que Deus providenciará o necessário quando houver confiança nele. Todavia, à diferença do primeiro texto, no Evangelho falta a palavra «alegria», ao «lançar» a oferta. No lugar desta alegria Jesus percebia outras atitudes, comuns durante a cerimônia. O verbo em questão não foi usado por acaso, mas é um ótimo meio que o Evangelista encontrou para que pudéssemos estar presentes com Jesus e ouvir, com Ele, o barulho das moedas “lançadas” dentro das caixas. A cerimônia tinha um ritual fixo e público: os oferentes faziam a fila diante das caixas, entregavam o dinheiro ao sacerdote o qual conferia a validade das moedas (não eram aceitas moedas pagãs, romanas, por exemplo), quantificava o seu valor total, anunciava em alta voz o valor depositado, o devolvia ao oferente o qual “lançava” as moedas no cofre para que todos pudessem ouvir o tinir destas e testemunhar o fato.
Jesus não via alegria.
Infelizmente Jesus via aquele maligno verme que é o culto de si: o “ser protagonista”.
Jesus ensinava. Ensinava quanto ao «tomar cuidado», de se precaver, de olhar com horror o protagonismo que é o primeiro passo com o qual, aos poucos o nosso “eu” vai tomando conta da nossa alma. Jesus ensinava que é necessário aborrecer aquilo que é objeto do prezo comum, pois o julgamento definitivo que Deus dará não é sobre os atos mas sobre as atitudes que estão por trás de cada ato. Até fazer uma esmola pode ser indício de uma atitude egoísta, até fazer obras de beneficência pode esconder um culto a si mesmos: o protagonismo é pérfido e se insinua em inúmeras situações as quais, aparentemente parecem boas, mas de fato não o são.
Quando a oferta é autêntica, quando é expressão da generosidade do coração, ela é sempre alegre, pois não espera, logo não se decepciona. Não está na expectativa de algum reconhecimento nem do aplauso de ninguém, pois encontra o seu valor em si mesma. A oferta que Jesus reconhece como tal é escondida e não faz ouvir o seu tinir; no meio de tantos, que fazem questão de se deixar identificar, é despercebida.
É a maneira como oferecemos, que revela o que estamos dispostos a oferecer; é isto Jesus viu tanto nos mestres da Lei quanto na viúva. A oferta tem sempre uma relação com o que de fato somos, ela revela realmente “quem” somos.
Um detalhe do Evangelho, pode nos ajudar a entender a ligação que existe entre a oferta e a relação com Deus. O Evangelista escreve que Jesus percebeu as «longas vestes» (não “vistosas”) que os oferentes de relevo trajavam, não é por acaso a nota. A veste longa era um símbolo. Por exemplo, no livro de Gênese, encontramos a história de José: ele ganhou uma «veste de mangas longas» em sinal de predileção por parte do pai Jacó (Gen. 37,3). Os fariseus e todos quantos se consideravam bons religiosos, costumavam usar vestes longas para declarar que se sentiam favoritos por Jahvé, e isto por causa de sua fidelidade à Lei de Deus. Era um modo de se apresentar como exemplo a fim de estimular o povo menos devoto. Estas longas vestes eram cingidas por um cordão azul e uma série de franjas (como ainda hoje se usa) para indicar assim que a fidelidade a Deus cingia seus rins (vida) na viagem em Sua direção.
Eis então o quadro que e apresenta aos olhos de Jesus: por um lado pessoas que, por si próprias, emitiam um julgamento sobre si mesmas. Tinham todos os elementos que lhes permitiam antecipar o julgamento que Deus daria, pois eram fiéis à Lei de Deus, faziam muitas esmolas, etc. enfim, podiam até se apresentar como exemplo para quem quisesse trilhar o caminho de Deus. Por outro lado uma viúva cujas moedas não fizeram algum barulho, eram poucas demais para serem ouvidas. Contudo, paradoxalmente, esta mesma mulher se demonstrava a verdadeira conhecedora da Lei pois, ao entregar tudo o que possuía, estava entregando si mesma a Deus. Os outros, os doutores, além de dar um julgamento errado sobre si mesmos e presunçoso de saber interpretar o pensamento de Deus, mantinham sempre uma parte para si, uma “reserva para qualquer eventualidade”. A viúva não.
Onde não há espaço para a Providência, sequer há espaço para o amor a Deus. A entrega é consagração, amor de quem se entrega sem reservas; é o objetivo de toda a história da salvação: «Eu serei o vosso Deus e vocês serão o meu povo» (Lv. 26,12).


